Sessão de Comunicação 4
1. Watjuho Ja’a: revitalização linguística no povo Manoki (Iranxe)
Bernat Bardagil, Edivaldo Nãpuxi, Dário Kanuxi
O povo Manoki (também conhecidos como Iranxe) é uma nação indígena do vale do Juruena, no Mato Grosso. A língua própia dos Manoki é uma variedade da língua mỹky, uma língua isolada falada perto da área de alta diversidade linguística conhecida como Guaporé-Mamoré (Crevels e Van der Voort 2008). O objetivo dessa apresentação é discutir as estratégias sendo adotadas pelo povo Manoki para iniciar um processo a longo praço de retomar a língua própria entre os membros jóvens da comunidade.
A língua manoki, uma variedade diferenciada da língua mỹky, é falada hoje em dia por menos de 10 pessoas, a mais jovem das quais tem mais de 60 anos, sendo uma falante de uma geração que práticamente já não aprendeu a língua. A interrupção da transmissão da língua manoki vai ligada de muito perto á história de contato dos manoki. Conhecidos como iranxe e encontrados pela primeira vez pela expedição telegráfica na década de 1910 na sua terra de orígem, entre os ríos Papagaio e Sangue, os Manoki sofreram desde o início do século XX a violencia dos seringueiros na área. A pressão da fronteira colonizadora, em avance inexorável, também causou doenças infeciosas e um aumento nas tensões entre os diferentes povos vizinhos, inimigos tradicionais mas originalmente espalhados em uma área muito maior. O resultado foi uma dizmação dramática da população Manoki, que acabou achando refugio na missão jesuítica de Utiariti.
Na missão, as crianças Manoki e de outras nações indígenas foram colocadas em um internado, onde falar na língua indígena foi proibido e eles eram castigados se diziam alguma palavra que não fosse em português. A separação dos pais e a proibição de falar a língua causaram um genocídio cultural entre os povos indígenas da missão, que viram gerações inteiras crescer sem conhecer a língua própria nem a maioria dos elementos da cultura material e imaterial.
Hoje em dia, os Manoki se encontram em um momento de uma importante expansão da identidade manoki tanto geográfica como cultural. O povo Manoki começou em 2019 um processo de reaprender a língua manoki, falada hoje em dia por uns poucos anciões da comunidade. Essa retomada da língua própria se articula na criação de um coletivo para o estudo da língua manoki, o Coletivo Watjuho Ja’a “juntos pela língua”. Esse coletivo se ocupa da articulação de várias atividades centradas na revitalização da língua manoki, incluindo uma escola de língua organizada pelo linguista Bernat Bardagil (UC Berkeley). A partir do coletivo, se organizam encontros de estudo, se elaboram materiais para aprender aspectos vários da língua, e também está se promovendo uma iniciativa extensiva de documentação da língua manoki.
Finalmente, a apresentação vai se centrar nos enfoques adotados para aprender a língua. Esse processo tira inspiração de várias iniciativas semelhantes realizadas com sucesso por nações indígenas nos Estados Unidos ou no Canadá, incluindo uma adaptação do método Where Are Your Keys (WAYK).
2. A perda e a retomada do Guató
Kristina Balykova, Gustavo Godoy
O povo guató vive há tempos imemoriais no Pantanal e permaneceu com autonomia relativa desde o séc. XVI até o início do séc. XX, quando as fazendas invadiram a região. Os guatós não fundavam “aldeias”. Construíam moradas dispersas na beira do rio durante a seca. Mudavam-se para terras mais altas na cheia, e diferentes famílias podiam coabitar até a água baixar. As famílias se dividiam quando os filhos cresciam. O núcleo da preservação da língua guató, hoje quase extinta, eram estas famílias dispersivas.
Atualmente, os guatós ocupam a TI Guató (MS) e a TI Baía dos Guató (MT), além de outros locais. A primeira TI é morada de alguns idosos que tiveram contato efetivo com a língua. Porém, o guató não é primeira língua de nenhum jovem. Já idosos o lembram com diferentes competências. Os dois mais competentes, Vicente da Silva e Eufrásia Ferreira, moram fora das TIs.
Três caminhos contribuíram para a degradação da base social do guató: o celibato masculino, o casamento feminino com neobrasileiros e o apadrinhamento de crianças por fazendeiros. Nesta apresentação, ilustraremos a morte da língua guató, usando como o exemplo três gerações de uma família. A primeira geração – os finados irmãos João Quirino, Joãozinho e Zulmira – era bilíngue em guató e português, já a de seus netos é monolíngue em português.
A filha de João Quirino, Estelita casou-se com o guató Pedro e seus filhos usaram o idioma até a adolescência, sendo o último lote de guatós que aprenderam a língua em estágio natural. Quando Estelita morreu, as filhas foram levadas para Cáceres, onde esqueceram a língua materna.
Joãozinho, casado com a guató Sabina, teve quatro filhos homens, nenhum dos quais se casou. A filha caçula, Francisca, não aprendeu o idioma. Já a mais velha, Eufrásia, foi falante fluente e, hoje em dia, é uma das últimas lembrantes do guató e a nossa principal consultora. Porém, não transmitiu a língua para o filho Damião.
Zulmira, casou-se com um não-guató que proibia o uso do idioma. Por isso, seus filhos não foram falantes nativos. No entanto, aprenderam várias palavras com a mãe e outras falantes vizinhas. Já os netos de Zulmira só falam português.
Apresentaremos as trajetórias pelas quais a língua se degenerou, a partir de entrevistas com Vicência (neta de João Quirino), Eufrásia (filha de Joãozinho) e Alfredo (filho de Zulmira). Mostraremos como os processos gerais da perda linguística se concretizaram nas biografias desses guatós.
Além disso, trataremos das iniciativas de revitalização nas duas TIs. Na TI Guató, que abrigou alguns dos últimos falantes da língua, um trabalho de revitalização foi iniciado por Dalva Maria Ferreira, esposa do ex-cacique. Nos anos 90, ela cuidou de idosos falantes do guató e anotou palavras e frases, que resultaram em um pequeno vocabulário e em material para aulas de língua étnica. Mais recentemente, o professor Felipe Mendes também fez anotações junto a alguns lembrantes. Hoje em dia, a discussão mais acirrada entre Dalva Maria e os professores é sobre o jeito certo de escrever o guató, visto que não há ortografia padrão.
Na TI Baía dos Guató, mais recente do que a primeira, já não há nenhuma memória do idioma. Ao mesmo tempo, os guatós de lá veem a retomada da língua como um meio importante de afirmar sua identidade, que os fazendeiros vizinhos tentam negar nas disputas judiciais. Assim, a revitalização nessa TI começou pela demanda da comunidade, no âmbito de um projeto do CNPq. As duas oficinas realizadas em 2016 e 2017 resultaram em cartilhas. Em 2018, mais uma oficina foi organizada pela Funai-MT e Seduc-MT.
Percebe-se que essas iniciativas possuem caráter distinto, pois se originaram em contextos diferentes. Porém, elas compartilham o mesmo problema: a falta de material didático. Este problema será em parte resolvido com a produção de um dicionário multimídia, que estamos elaborando dentro do projeto PRODOCLIN do Museu do Índio.
3. Dicionário Sanöma-Português como ferramenta para o uso da língua Sanöma no atendimento à Saúde
Joana Autuori, Helder Perri Ferreira
Quase toda a população Sanöma é monolíngue em sua língua materna. Em decorrência da estrutura fornecida pelo Estado para o atendimento de saúde e educação e a presença do Exército com o Batalhão Especial de Fronteira localizado em Awaris, na Terra Indígena Yanomami, onde residem os Sanöma, o contato entre Sanöma e pessoas não indígenas vem se intensificando. A Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) mantém alguns postos de saúde na região, onde enfermeiros e técnicos de enfermagem passam cerca de quinzes dias por mês. Em cada comunidade, um Sanöma cumpre a função de Agente Indígena de Saúde (AIS) para atuar juntamente com os profissionais não indígenas. Apesar de os Postos de Saúde estarem localizados dentro das comunidades, a língua utilizada para a interação entre os Sanöma e os profissionais de saúde é o português. O contato cada vez maior com pessoas não indígenas faz com que o domínio da língua portuguesa seja uma ferramenta para a reivindicação de direitos de saúde, educação, defesa do território, e também de interação com o grupo socialmente dominante. O projeto Dicionário de Saúde Sanöma-Português, inserido no âmbito do Projeto Salvaguarda do Patrimônio Linguístico e Cultural de Povos Indígenas Transfronteiriços e de Recente Contato na Região Amazônica, promovido pelo Museu do Índio/FUNAI e UNESCO, vem em resposta à demanda da população Sanöma de aprender a língua portuguesa para poder dialogar com a sociedade não indígena. Hoje a população não indígena está presente no território Sanöma e aprender a língua portuguesa é uma estratégia de sobrevivência. Por outro lado, para oferecer serviços de qualidade, com a devida atenção às necessidades dos Sanöma, observando seu conhecimento, sua maneira de combater doenças, e de utilizar seu território, é fundamental que a população não indígena que presta serviços para essa população, seja incentivada e tenha material de apoio para usar a língua Sanöma – e não o português – na interação com esse povo. A utilização da língua Sanöma em detrimento do português pelos órgãos estatais é apenas uma das iniciativas que podem ser tomadas para a manutenção e o fortalecimento de sua cultura, no entanto, é uma iniciativa fundamental para que direitos básicos sejam respeitados.
Este trabalho de documentação e revitalização está sendo realizado por uma equipe intercultural composta por pesquisadores e sábios sanöma e pesquisadores não indígenas, e visa a elaborar um dicionário bilíngue sanöma-português e português-sanöma baseado em parte no livro Saúde Yanomami: Um manual etnolinguístico (Albert e Gomez, 1997) e na tese de Rosangela Bisserra (2006). A coleta e elaboração dos dados realizada por meio de smartphones pelos Sanöma é um diferencial deste projeto, que já conta com uma versão online e interativa do dicionário que pode ser visualizada e editada inclusive em smartphones.
Com este projeto, os pesquisadores envolvidos esperam, por um lado, que a língua Sanöma seja incorporada pela equipe de atenção à Saúde dos Sanöma, tanto nas comunidades Sanöma, quanto nas cidades. Por outro lado, há o objetivo de que os Sanöma aprimorem o conhecimento de português na área de saúde a fim de se comunicar com a equipe de saúde.
4. Documentando Narrativas Tradicionais em Yaathe
Elvis Ferreira de Sá (Coletivo Fulni-ô de Cinema)
Este trabalho apresenta resultados de um projeto de documentação da língua indígena brasileira Yaathe. O trabalho apresenta um breve histórico do povo indígena Fulni-ô, colocando em evidência a resistência dos Fulni-ô e a sobrevivência de seu idioma Yaathe em meio às fugas para os seus rituais secretos, discute as bases teóricas da documentação linguística, focando procedimentos que visam a envolver as comunidades indígenas afetadas no trabalho de documentação, descreve os procedimentos metodológicos de pesquisa na área de registros de línguas, com o uso do aparato tecnológico disponível, expondo assim as maneiras como foi feita a coleta de dados em áudio e vídeo, aplicando esses procedimentos ao trabalho de registro das narrativas dos anciãos e descrevendo como o trabalho foi realizado, ilustra a documentação realizada com os velhos Fulni-ô, apresentando amostras dos arquivos resultantes da documentação: como foram transcritos e anotados, por exemplo. Por fim, apresenta comentários sobre os dados coletados, apontando para a importância de estudos linguísticos subsequentes. Este trabalho objetivou colocar em evidência a importância da revitalização da tradição oral do meu povo, em conectividade com as novas tecnologias correspondente da documentação, buscando a manutenção, revitalização e preservação da língua Yaathe.
5. Metacognição gramatical: o caso das oficinas de produção de gramática pedagógica Karajá
Cristiane Oliveira, Chang Whan, Leandro Lariwana Karajá
Esse trabalho busca apresentar o resultado do trabalho de produção da Gramática Pedagógica da língua Karajá (Museu do Índio/Unesco) (OLIVEIRA et al. 2014) e refletir como a metacognição acerca de processos gramaticais pode auxiliar o professor de língua materna das comunidades Karajá. Metacognição é descrita como o conhecimento sobre processos cognitivos e é reconhecida como um dos pilares do aprendizado (BRANSFORD et al. 2000). A reflexão metacognitiva da capacidade linguística humana e da produção e compreensão de uma língua específica está presente nos programas de formação de professores de língua ao redor do mundo (DYPEDAHL, 2018). Entretanto, uma das perguntas com a qual nos deparamos quando discutimos o ensino de língua materna nas escolas é: Por que ensinar um conhecimento já internalizado? Por outro lado, dificilmente nos questionamos quando buscamos compreender outros processos igualmente naturais e/ou inatos, tais como: divisão celular, oxidação, transformações sociais, etc. Assim, a busca pela compreensão do mundo que nos cerca e dos nossos próprios processos biológicos e mentais é parte incontestável da trajetória do conhecimento humano e escolar. Nessa perspectiva, Honda & O’Neil (2008) discutem como a reflexão metacognitiva de estruturas gramaticais pode ser uma poderosa ferramenta para professores do ensino básico. Os autores ressaltam que a metacognição de processos gramaticais não se restringe a processos estritamente linguísticos, mas também contribui para a compreensão de cognições de interface, tais como: classificação, quantificação, teoria de conjuntos, lógica etc. Assim, apesar da metacognição linguística não ser requerimento para aquisição de uma língua (CHOMSKY, 1986), é uma ferramenta poderosa que deve estar disponível para professores e estudantes (MAIA et al., no prelo). E, no âmbito das línguas indígenas, pode ser crucial no atual contexto ecolinguístico e político-educacional, pois provê argumentos científicos para combater o preconceito linguístico e refutar proposições errôneas, tais como: a gramática do português é mais difícil ou complexa do que a das línguas indígenas. Por isso, as oficinas de produção de gramática pedagógica nas aldeias se configuraram como um importante momento de reflexão e aprofundamento das características gramaticais do Karajá pelos professores e pesquisadores envolvidos. Por fim, cabe salientar que metacognição gramatical pode ser uma ferramenta poderosa para a manipulação consciente da informação linguística (MAIA, 2019) – ou para uma reflexão profunda da informação manipulada. A não distribuição de tal conhecimento beneficia a poucos, e pode ser fatal para o futuro de uma nação democrática e inclusiva.