Relatório

“Quando se diz que uma língua está extinta, estamos matando com a nossa escrita…vamos descolonizar começando pela escrita”
Anari, Pataxó

“Vou falar para meus parentes aqui, vamos falar para nossos filhos continuarem aprendendo a nossa língua”
Wendi, Wapichana

“Cada vez que morre um parente, a língua more, gradativamente; a língua fica viva quando tem falantes”
Adriana, Karajá

“Meu sonho, meu pensamento, é que o povo Puruborá volte a falar nossa língua…os Puruborá resistiram para existir”
Mario, Puruborá

“Este é o meu sonho, ver todo um povo Kariri-Xocó falando nossa língua de tradição”
Idiane, Kariri-Xocó.

“Tudo para nós é educação”
José Galvez, Kotiria

“Obrigada por compartilhar conosco os cantos do seu coração”
Mari Ropata


Acabou o primeiro
Viva Língua Viva, seminário internacional que se estendeu por quatro dias, de 11 a 14 de novembro 2019, iniciativa da Associação Brasileira de Linguística. Foram 21 comunicações orais, 30 pôsteres, 2 Oficinas, 2 Mesas, 2 conferências. Outros Viva Língua Viva virão, já que é agora um evento permanente da agenda da ABRALIN. O próximo será em 2021, em Belém do Pará e o site VLV (http://vlv19.abralin.org/ ) é agora também um lugar de registros, trocas de experiências e informações. 

Não teríamos conseguido realizar uma ideia e um encontro que muito desejávamos sem o apoio de várias outras instituições: Museu do Índio (FUNAI-RJ), UNESCO, Museu Nacional-UFRJ, Associação Brasileira de Antropologia, Programa de Pós-Graduação em Linguística-UFRJ, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional-UFRJ, o Museu Paraense Emílio Goeldi, Universidade Massey (Nova Zelândia), Universidade de Leeds (Reino Unido), NAMA da Universidade de Arizona/Tucson. Colegas e amigos nos ajudaram com doações. Os participantes indígenas estiveram no palco, protagonistas: Apyãwa, Baniwa-Koripako, Fulniô, Guarani, Kaingang, Karajá, Kariri-Xocó, Kiriri, Klamath, Kokama, Kotiria, Manoki, Maxakali, Pankararu, Paumari, Pataxó, Puruborá, Sakurabiat, Tikuna, Yawanawa, Wapichana, Xerente. Ouvimos línguas e celebramos com os cantos Māori, Klamath, Yawanawa, Pataxó, Kariri-Xocó.

Aos que apresentaram comunicações e posters, aos conferencistas, aos condutores das Oficinas, aos membros do Comitê organizador e do Conselho Científico, à equipe incansável do Museu do Índio que registrou tudo do primeiro ao último minuto e que montou a exposição Línguas Vivas-ProDoclin, à equipe do Setor de Eventos do Museu Nacional, aos tradutores Mariana Maia e Gabriel Soares, a todos vão nossos agradecimentos, do fundo do coração. Valeu mais do que a pena, foi um evento inédito em sua concepção e programação, a diversidade atravessou todos os momentos e todas as falas, mas todos e tudo convergiram na afirmação forte e definitiva: as línguas dos povos originários existem e resistem, retomam sua força, se reinventam, contra toda violência, toda repressão, todo silenciamento. 

O evento contou com a presença de pesquisadores indígenas (a maioria) e não-indígenas de várias regiões do Brasil e do mundo. Foi também um evento político. Defender a vitalidade das línguas indígenas envolve integridade de territórios, saúde, preconceitos, manutenção de tradições rituais com seus cantos, entre outras coisas.

A presença internacional foi marcada pelos intelectuais do povo Māori, vindo de seu país Aotearoa – que os paikeha, os neoeuropeus colonizadores convencionaram chamar de Nova Zelândia. Estiveram conosco Mari Ropata, Hone Waengaranga Morris e Sally Akevai Nicholas, da Universidade Massey. Mari Ropata nos fez conhecer os Kōhanga Reo, “ninho de língua”, através da filosofia incorporada na metáfora do trançado Te Whariki. O “ninho” é o local onde se acolhem as crianças, envolvendo-as desde pequenas com a língua e a cultura do povo māori. O programa já foi reconhecido como o de maior sucesso quanto à revitalização linguística. O movimento de revitalização começou em 1972, quando o grupo Ngā Tamatoa, formado por Māori urbanos e escolarizados reivindicaram ações para a sobrevivência de sua língua originária, considerada como taonga, um tesouro de relevância cultural. Hone mostrou-nos como a própria ideia de língua se relaciona com a energia vital de uma pessoa, sua passagem pelo corpo. A vitalidade da língua também é a vitalidade do corpo e do espírito. Estes dois pensadores māori mostraram o poder de suas filosofias e de sua luta. Hone apresentou-nos, junto com Arianna Berardi-Wiltshire, o projeto de ensino de māori na universidade e a vontade de neozelandeses sem ascendência māori se tornarem aprendizes e usuários, pensando o Aotearoa do futuro como um país de língua māori. Sally Akevai Nicholas Kia nos levou ainda mais longe para que pudéssemos conhecer a história da língua māori das Ilhas Cook, na Polínésia.

O intercâmbio entre o povo māori e o Brasil indígena já começou há algum tempo. Esta colaboração, já rendeu frutos através do trabalho de Marcia Gojten Nascimento, do povo Kaingang, e de pesquisadores da UFRJ. Márcia foi para Aotearoa (Nova Zelândia) e começou a implementação de um ninho de língua. Ela falou e presenteou-nos com sua própria trajetória, como indígena, como professora em escola, como linguista e como incentivadora da documentação e revitalização da língua e da cultura Kaingang.


Te Kōhanga Reo: kohanga.ac.nz

Mais informações sobre o ninho Kaingang:  revistas.ufrj.br/index.php/rl/article/view/10436

Yandê Connection – Marcia Kaingáng & Mari Ropata live from New Zealand. URL: youtu.be/VbQymLDId34 


Joseph Dupris trouxe a experiência de revitalização da língua do povo Klamath, do noroeste dos Estados Unidos e, com Wilson Silva, enfatizou o enlace entre revitalização e documentação. Suzi Lima, da Universidade de Toronto, deu notícias das línguas das First Nations do Canadá, dos muitos projetos de resgate linguístico naquele país e, ao comparar com suas vivências entre os Yudjá e os Kawaiweté, no Brasil, apontou a importância do processo para além da concretização de “produtos”, processo que empodera pesquisadores indígenas e aproxima gerações.

Abriram-se as fronteiras do Brasil. Uma iniciativa poderosa foi apresentada pelo professor Damazinho Maxakali na comunicação Juntos somos mais fortes! O professor Damazinho leciona língua e cultura maxakali em escolas da rede pública da cidade de Bertópolis, próxima das aldeias maxakali em Minas Gerais. A presença desta bela língua e da beleza artística de seu povo em escolas não indígenas tem se tornado uma ponte de comunicação com os não índios e alimentado interesse e respeito entre os moradores da cidade.

Altaci Corrêa Rubim nos arrebatou com o projeto de fortalecimento cultural kokama. Para atrair a atenção dos jovens, incentivadores culturais kokama criaram aplicativos e uma verdadeira marca étnica em vários produtos, como camisetas, bolas e canecas. Uma iniciativa digna de nota são também os museus que os Kokama estão organizando e os jogos de tabuleiros baseados em histórias tradicionais.

Reinildo L. S. Paumari e Zedequias M. S. Paumari falaram de uma notável realização, também baseada em jogos e inovação, visando reaver a vida plena de sua língua: o Campeonato da língua paumari, onde grupos que representam diferentes aldeias competem na apresentação pública de narrativas tradicionais, avaliadas por um júri. As narrativas premiadas estão sendo transformadas em animações usando técnicas diversas.


Canal do campeonato da língua paumari: 
youtube.com/channel/UCTjxlWK4iowqMZaHUrW9Dow


Paroo’i, do povo Apyãwa (Tapirapé), enfatizou a importância da vida ritual para a preservação e promoção cultural e linguística. Observou que a organização ritual e a Takãra são a universidade apyãwa.

Os professores Sakurabiat e Puruborá, junto com Ana Vilacy Galúcio (MPEG), contaram o processo de enfraquecimento de suas línguas e o trabalho para sua volta na boca das novas gerações. Miguel Cabral e José Trindade, junto com Kristine Stenzel, nos fizeram conhecer as atividades da Escola Indígena Kumuno Wʉ’ʉ Kotiria: desenvolvimento de uma ortografia prática, dicionário multimídia, gramática pedagógica, livros didáticos e acervos de registros documentais audiovisuais. Foram lançadas duas publicações recentíssimas do Museu do Índio que reúnem atividades realizadas nas oficinas Kotiria e Wa’ikhana. Edna Yawanawa foi incisiva em seus comentários ao longo de todo o evento

Os pesquisadores yathee (Fulni-ô), Fábia e Elvis, apresentaram, em duas comunicações e com o filme Guardiões de um Tesouro Linguístico, o fortalecimento da língua yathee, falada em Pernambuco. Elvis falou da solidariedade aos outros parentes indígenas do Nordeste, que lutam ativamente pela retomada de suas línguas originárias.

Do Nordeste vieram professores e pesquisadores empenhados na retomada de suas línguas de tradição. Todos lembraram os séculos de resistência contra todas as violências e humilhações. Ouvimos atentos as falas dos professores Pataxó – Anari, Lucicleia, Sirleide, Diana, Clarivaldo e Reginaldo – sobre a longa jornada de retomada do Patxohã; o entusiasmo de Idiane Cruz da Silva, junto de Wmamy, do povo Kariri-Xocó; de Jozilene sobre a volta da língua Kiriri.

Do Pantanal, os Guató afirmam: nossa língua existe! Soubemos da história de esfacelamento do povo Guató que levou a quase morte de sua língua, que reemerge das memórias dos dois últimos e esquecidos falantes – Eufrásia e Vicente – graças a um projeto de documentação emergencial e vislumbrando uma possibilidade de revitalização.

O encontro contou com uma importante iniciativa: as oficinas realizadas por Luiz Amaral (Universidade de Massachussets-Amherst), onde metodologias, teorias e questões de alfabetização e de ensino e aprendizagem de segunda língua foram apresentadas de modo simples, prático e direto. Luiz Amaral propôs a criação de uma rede de compartilhamento de práticas, ferramentas e materiais de revitalização, integrando povos e pesquisadores de vários países, para, através da troca e do diálogo, fortalecer projetos de vitalização de línguas que foram silenciadas pela espoliação e pela escolarização.

A professora Wapichana Wendy M. Leandro ilustrou a metodologia de ensino que vem desenvolvendo com Luiz Amaral e usada nas escolas wapichana da Guiana. Wendy também apresentou uma pesquisa para a avaliação de produção e compreensão da língua wapichana, visando medir a competência de falantes.

Viva Língua Viva contou ainda com apresentações sobre novos temas e novas demandas, como a presença de línguas de sinais entre os povos indígenas, os usos da escrita entre os Kaingang, um dicionário Sanöma-Português como ferramenta para um adequado atendimento de saúde, o ensino “descolonizado” do inglês para universitários indígenas e a diversidade em sala de aula. 

Os pôsteres mostraram um grande leque de temas culturais, linguísticos, educacionais e políticos, acrescentando conhecimento de outras línguas, como o Nheengatu falado pelos Dôw, e aspectos gramaticais do Korubo, Terena, Kadiwéu, a diversidade dialetal Tikuna. Vimos também outras experiências de documentação e de revitalização, como entre os Terena, Xerente, Macuxi, o dicionário multimídia Baniwa-Koripako.

O evento trouxe vários exemplos da criatividade de povos que ao se reinventar e modernizar – com celulares, mídias digitais, animações, jogos – nos levam de volta ao saber dos antepassados. Uma máquina do tempo que apontando para o futuro nos leva a retomar o passado do que chamamos de Brasil, que Ajuru do povo Pataxó chamou de Pindorama ou Pindo retama, como os antigos Tupi denominavam sua região.

Por fim, desse primeiro Viva Língua Viva fica o sentimento compartilhado por vários dos participantes: um raio de esperança da vontade de ser, própria dos indígenas, que atravessa nossos tempos sombrios. Viva a vida das línguas indígenas!